1. Chamam-lhe acordo, mas é de desacordo o ambiente que se respira em torno dele.
Qualificam-no, depois, como acordo ortográfico e a dúvida surge a respeito do orto, isto é, do padrão que serve de referência para a nova grafia.
Eis, portanto, uma questão que nos aparece sob a égide da contradição e da indefinição.
Os termos que a enunciam têm sido, a cada passo, desmentidos pela realidade da discussão.
Poderá ter existido acordo entre as delegações dos países. Mas está longe de haver concordância na sociedade portuguesa.
Uma decisão desta magnitude devia ser precedida de um amplo debate até porque ela interfere, directamente, na vida das pessoas. São estas os falantes. São estas os escreventes. Porque não escutá-las?
Mas mesmo na comunidade científica a tónica está longe de ser a convergência.
Há profundas fracturas e notórias clivagens entre os diversos posicionamentos.
Há perspectivas válidas que deviam ser tidas em conta. Há contributos que mereciam ser incluídos. E há advertências que seria bom acolher.
2. Não há dúvida de que a língua é um instrumento maleável e um processo aberto.
É sensato estar atento às flutuações que se verificam e procurar os equilíbrios necessários.
As palavras têm uma origem e assumem uma direcção que é impossível descrever por antecipação.
O pêndulo vai, assim, oscilando entre a etimologia e a sonoridade. A tendência, como é sabido, aproxima-se do som. O primeiro impulso é para se escrever conforme se fala.
É então que a aprendizagem faz o seu trabalho e executa o seu papel.
A sonoridade é um elemento importante, mas não é o critério decisivo nem, muito menos, o critério único.
Este (delicado) jogo de equilíbrios permite que se vá fazendo adaptações sem que se desfigure o património linguístico.
É assim que, por exemplo, escrevemos farmácia e não pharmácia (porque a sonoridade é efe), mas continuamos a grafar hoje (embora o agá seja mudo).
Ou seja, a experiência mostra que as reformas na grafia têm consistido em adaptações. O que se está a passar, agora, é, talvez, mais do que isso. Em vez de uma adaptação, poderemos estar em vias de um desfiguramento.
E, nesse caso, é a identidade que está em causa.
3. É certo que, também aqui, valerá o dito de Pessoa: «Primeiro estranha-se, depois entranha-se».
Diante do facto consumado, não sobrarão muitas alternativas. E lá continuaremos a chamar língua portuguesa à nova grafia.
Mas quando o citado Pessoa diz que «a minha pátria é a língua portuguesa», é caso para perguntar se, a partir de agora, estaremos a falar da mesma entidade, isto é, da mesma língua que ele tão bem cultivou.
Tudo indica que a matriz da nossa língua se está a tropicalizar excessivamente.
Basta atentar neste pormenor, nada despiciendo e bastante significativo.
A palavra actor vai passar a ator, deixando cair o c. Ora, o espanhol, o francês e o inglês mantêm o referido c.
Isto significa que, em matéria linguística, estamos a distanciar-nos da Europa.
A norma já não é tanto a etimologia, mas a sonoridade. Só que aqui também o critério não é uniforme. Basta notar que o h mudo se mantém.
Daí que o orto de ortografia seja cada vez mais difuso. Mas é indiscutível que a matriz portuguesa da língua portuguesa está bastante obscurecida.
Aliás, quando se acentua a sonoridade como padrão, o problema já nem se coloca entre Portugal e outros países.
Mesmo em Portugal, há pronúncias muito diferentes e isso nunca pôs em risco o uso da mesma grafia.
4. E é aqui que deparamos com a questão da necessidade de um acordo deste género.
Será que era mesmo preciso uniformizar a escrita num espaço tão amplo?
Se um único país como a Espanha convive bem com várias grafias, porquê esta sofreguidão em impor a mesma escrita entre países tão diversos?
A diversidade é uma riqueza. A vontade de tudo regulamentar não ajuda muito.
Se há cada vez mais pessoas a ler livros em diversas línguas, haveria alguma dificuldade em ler ora o Português de Portugal ora o Português do Brasil?