1. Parece que é na África que se encontra o nosso berço. E tudo indica que é na África que estamos a reencontrar o nosso destino.
Haverá, no que se está a passar sobretudo na Tunísia e no Egipto, muito de incerto, de perigoso e até de temerário. Mas reconheçamos que, em tudo o que os nossos olhares avistam, há também muito de belo, de heróico, de comovente e de puro.
Até há poucos dias, seríamos levados a pensar que já não se faziam revoluções assim.
E eis que, de repente, nos sentimos revisitados pelas imagens (imperecíveis) da Checoslováquia de 1968, da Praça de Tianamnen e da queda do Muro de Berlim.
É claro que nenhum êxito está assegurado à partida. O Muro caiu. Mas, antes da queda do Muro, a revolta de Praga foi esmagada e muitos manifestantes de Tianamnen foram mortos.
2. Pensávamos, entretanto, nomeadamente neste ocidente adormecido, que tudo isto estaria arrumado nos anais da história e nos baús das recordações.
Desde a década de 90, deixámos de nos manifestar por ideais. Apenas nos mobilizamos por interesses.
E, mesmo aqui, é por interesses pessoais ou de grupo que saímos para a rua. Daí que as manifestações nos coloquem não tanto ao lado uns dos outros, mas uns contra os outros.
Habitualmente, só nos manifestamos quando as nossas coisas estão em risco. Porque é que não nos manifestamos pelos outros?
Olhemos para a Tunísia e para o Egipto. As imagens de violência deixam-nos, certamente, destroçados, mas há uma lição que avulta.
Aquele povo levantou-se, praticamente em uníssono. É caso para dizer que, ali, se cumpre ainda a máxima do um por todos e todos por um.
3. Vamos, por isso, notando que há qualquer coisa que fomos perdendo na Europa e que estamos a reencontrar, agora, na África.
Na Tunísia e no Egipto, é todo um povo que se levanta, é toda uma voz que se ergue e é toda uma onda que se cria em torno de um desígnio comum: recuperar a liberdade, pôr fim à opressão.
Afinal, ainda há quem lute por ideais, quem não se subjugue à ordem instituída.
Ainda há quem, por uma causa, esteja disposto a sacrificar não apenas o descanso, não apenas o lugar, mas a própria vida.
O gesto de Mohamed ElBaradei é bastante raro. Quantos arriscariam uma reconfortante carreira diplomática, aureolada com um Prémio Nobel, para desafiar um poder impiedoso?
Mas a reacção quase unânime à atitude de Mohamed Boauzizi é simplesmente espantosa.
Este jovem tunisino, que ganhava o sustento para a família, era constantemente incomodado e agredido pelas autoridades. A certa altura, não aguentou e imolou-se com gasolina.
A sua morte desencadeou uma vaga de estremecimento e de revolta incontida. Muitas pessoas se juntaram na sua cidade. Outras vieram de muitas cidades. Até que praticamente todo o povo se congregou.
4. Ninguém pode antecipar o futuro. Às vezes, as revoluções degeneram em amargas desilusões.
Tudo pode até ficar pior. Mas nada continuará igual. E só por isso já terá valido a pena sair, gritar, chorar, persistir.
É com esta África que podemos aprender. A Europa foi perdendo o rumo da vida, a bússola do sentido, o horizonte da esperança.
Uma depressão endémica abateu-se sobre o ocidente. Só nos levantamos quando um direito é perdido, quando um hábito é alterado.
É por isso que há qualquer coisa de épico na porfia que o povo tunisino e egípcio está a manter pela sua dignidade.
Já há mártires e a vida humana é demasiado preciosa para que um só ser humano seja imolado. Como sempre, a esperança está a ser regada com sangue.
Por aqui, continuamos atomizados, deslaçados. Sobram aspirações corporativas. Falta um desígnio nacional, um rumo colectivo, um sentido comum.
Ainda estaremos a tempo de nos reencontrarmos como povo, como comunidade, como família?