1. Confesso que também eu fiquei surpreendido com as declarações do Papa acerca do uso do preservativo.
Não se trata, como ressalva o porta-voz do Vaticano, de uma revolução. Mas é inquestionável que estamos perante uma mudança.
Tal mudança não ocorre no terreno dos princípios. No seu mais recente livro, uma prolongada entrevista com o jornalista Peter Seewald, Bento XVI mantém que «não considera a utilização de preservativos uma solução verdadeira e moral».
Neste sentido, reassume que «a mera fixação no preservativo significa uma banalização da sexualidade, e é precisamente esse o motivo perigoso pelo qual tantas pessoas já não encontram na sexualidade a expressão do seu amor, mas antes e apenas uma espécie de droga que administram a si próprias. É por isso que o combate contra a banalização da sexualidade também faz parte da luta para que ela seja valorizada positivamente e o seu efeito positivo se possa desenvolver no todo do ser pessoa».
Onde está, então, a mudança? No campo das situações concretas.
Recorde-se que, em Março de 2009, na primeira vez em que usou a palavra preservativo, o Santo Padre sustentou que «não se resolve o problema da SIDA com a distribuição de preservativos. Pelo contrário, o seu uso agrava o problema».
Actualmente, reconhece que «o preservativo pode ser um primeiro passo na direcção de uma sexualidade vivida de outro modo, mais humana».
Ou seja, onde antes o preservativo não era sequer admitido como último recurso, agora é equacionado como um primeiro passo.
Mesmo assim, lembra «a chamada teoria ABC, que defende Abstinence – Be faithful – Condom (“Abstinência - Fidelidade - Preservativo”), sendo que o preservativo só deve ser entendido como uma alternativa quando os outros dois não resultam».
Dá um exemplo: «Pode haver casos pontuais, justificados, como por exemplo a utilização do preservativo por prostitutos, em que a utilização do preservativo possa ser um primeiro passo para a moralização, uma primeira parcela de responsabilidade para voltar a desenvolver a consciência de que nem tudo é permitido e que não se pode fazer tudo o que se quer. Não é, contudo, a forma apropriada para controlar o mal causado pela infecção por HIV. Essa tem, realmente, de residir na humanização da sexualidade».
2. É importante notar que estas duas tomadas de posição aparecem não através de um acto formal do magistério, mas mediante a modalidade de entrevista. Isto não retira qualquer impacto ao respectivo conteúdo. Tanto mais que é a primeira vez que um Papa não recusa o uso de um anticonceptivo não natural ainda que visto como terapia e com as reservas apontadas.
As reacções que se fizeram ouvir certificam que muitos católicos já não aferem os seus comportamentos pelo magistério da Igreja. A utilização do preservativo é muito mais vasta do que aquela que, agora, se entrevê como residual.
Outro dado a reter é que o próprio magistério não é indiferente à realidade nem aos dramas que se vivem no mundo.
Na missão da Igreja, não cabem apenas princípios. Cabem também (e bastante) atitudes.
Ora, a atitude prioritária de quem se presume discípulo de Jesus Cristo é a misericórdia, a compaixão, a tolerância.
A mensagem deve ser continuamente anunciada. Os princípios hão-de ser sempre urgidos. Mas a compreensão nunca poderá ser esquecida nem sequer negligenciada.
Jesus foi sempre claro na doutrina. Mas não deixou de ser compassivo para com os que pensam e vivem de maneira diferente.
Tiago, aliás, percebeu isto muito bem quando disse que o juízo será sem misericórdia para quem não usa de misericórdia (cf. Tg 2, 13).
A Igreja, enquanto corpo de Cristo, é, ao mesmo tempo, a casa da verdade e a morada da misericórdia.
3. Acresce que a presença de Deus não pode ser deduzida somente da palavra revelada, pela linguagem. Ela ocorre também no segredo da consciência.
Tenhamos presente que, como avisa o próprio Jesus, Deus vê no segredo (cf. Mt 6, 1-6). E não é seguramente em vão que o Vaticano II chama à consciência o santuário secreto onde o Homem se encontra com Deus.
Como é sabido, a linguagem pública não é a mesma que a linguagem privada, íntima. «A palavra de Deus, como sublinha Simone Weil, é também a palavra secreta».
Uma pessoa não há-de ser estigmatizada por decisões que toma em consciência e, muitas vezes, no meio de condicionantes que chegam a ser dramáticas.
Mesmo quando não há sintonia, a alternativa nunca pode ser a exclusão. Ser católico (e, portanto, universal) é ser perito na arte na conjugação.
4. Simone Weil confidencia que o uso das palavras anathema sit foi o motivo que a «impediu de franquear as portas da Igreja». É igualmente esse a razão para que muitos a abandonem ou se desencantem com ela.
O legado de Jesus Cristo implica uma «solução harmoniosa entre indivíduos e comunidade». E esta harmonia passa, inevitavelmente, por um «justo equilíbrio de contrários».
A ética da responsabilidade, tão enfatizada por Bernhard Häring, não é um exclusivo de alguns. Deus distribuiu-a por todos.
Encaremos, pois, esta intervenção papal com serenidade de ânimo e como uma demonstração de sensibilidade por tanto sofrimento derramado pelo mundo.