1. As viagens mais marcantes não são aquelas que nos levam aos mais diferentes lugares. Serão, antes, aquelas que, por dentro, nos conduzem às ideias, aos ideais, às convicções.
Antony Flew foi um activo viajante (e um insaciável peregrino) entre Deus e a negação de Deus, entre a negação de Deus e Deus.
Curiosamente, não foi a Igreja que o segurou na hora de sair. Não foi também a Igreja que o atraiu no momento de voltar.
O regresso de Antony Flew a Deus move-se, segundo o próprio, no mero campo da razão.
O seu caso nem sequer pode ser alinhado na tendência que Grace Davie qualifica como «crença sem pertença».
Antony Flew atesta que não foi guiado pela fé. A mesma razão que o levara, em jovem, a negar Deus é que o impeliu, praticamente no fim da vida, a reafirmar Deus.
2. Antony Flew terá sido, porventura, o mais célebre filósofo ateu dos últimos tempos.
Nele se inspiram, com efeito, algumas das figuras que, ultimamente, têm corporizado o chamado novo ateísmo.
Foi, portanto, com espanto que, pouco antes da sua morte (ocorrida a 8 de Abril deste ano), Antony Flew fez sair um livro com o sugestivo título Deus (não) existe.
Aqui explana toda a sua trajectória e aprofunda os motivos da mudança. «Tudo num plano puramente natural, sem qualquer recurso a fenómenos sobrenaturais».
Por outras palavras, estamos perante «uma peregrinação da razão e não da fé».
3. Para ele, não é necessário ser crente para encontrar Deus. Basta seguir o conselho de Sócrates: «Temos de seguir a razão para onde quer que ela nos leve».
Flew não abandonou o ateísmo por causa de algum argumento novo. Procurou, simplesmente, estar atento à natureza.
Foram as leis da natureza que transportaram Flew para a Inteligência infinita. Foram elas que o tornaram sensível àquilo que os cientistas denominam a Mente de Deus.
A ciência coloca-nos três dimensões que, segundo Flew, apontam para Deus.
A primeira é o facto de a natureza obedecer a leis. A segunda é a dimensão da vida, de seres inteligentemente organizados, que surgiu da matéria. E a terceira é a própria existência da natureza.
Foi neste quadro que achou que, «na vida, os processos reprodutivos têm origem numa fonte divina».
É que, inspirando-se numa frase do filme Música no coração, Flew tem muito claro que «nada vem do nada, nunca tal aconteceu».
4. O testemunho de Antony Flew remete para outros casos, com desfecho diferente.
Que terá motivado, por exemplo, Bertrand Russell a permanecer no ateísmo?
Nada melhor do que consultar a filha. Esta palpita que, embora o percurso de Russell se orientasse pelos meandros da razão, o que ele via nos crentes deixava-o completamente inibido.
No entanto, ela crê «que toda a sua vida foi uma procura de Deus. Algures, no fundo da mente do meu pai, no âmago do seu coração, nas profundezas da sua alma, havia um espaço vazio que fora um dia preenchido por Deus, e ele nunca encontrou uma outra coisa para pôr nesse lugar».
Katharine assume gostar de ter convencido o pai «de que tinha encontrado aquilo que procurava, aquela coisa inefável que ele, durante toda a vida, desejara ardentemente. Mas era inútil».
O problema é que Russell «tinha conhecido demasiados cristãos fanáticos, daqueles que tiram a alegria e perseguem os seus opositores. Ele nunca seria capaz de ver a verdade que essa gente escondia».
A Igreja, que não interferiu em Antony Flew, terá sido um obstáculo para Bertrand Russell. Subsistiu, entretanto, o vazio.
Russell disse um dia: «Nada pode penetrar a solidão de um coração humano, excepto a profunda intensidade daquele género de amor que os mestres religiosos pregaram».
No fundo, não será o ateu alguém com uma intensa saudade de Deus?