Religião e diálogo é uma relação que tem tudo para dar certo. Só que nem sempre o que se mostra promissor à partida pode ser dado por garantido à chegada.
Há muitos tropeços no percurso e o fluxo das origens fica, amiúde, ofuscado pelas tormentas da caminhada. A impressão que dá é que, não raramente, quando avançamos no tempo, vamo-nos afastando da fonte.
A experiência atesta que, muitas vezes, uma coisa é a identidade e outra coisa, bem diferente, acaba por ser a realidade.
Pela sua natureza, religião é ligação. As portas para o diálogo parecem, por isso, abertas. Só que os atalhos da história parecem transformar uma combinação natural numa articulação quase impossível.
E se algum défice tem havido neste campo é precisamente quanto à substância. Existem hábitos de encontro, mas ainda estamos longe de uma verdadeira cultura do diálogo: do diálogo entre religiões e, já agora, do diálogo no interior de cada religião.
Daí a pertinência de um livro que acaba de aparecer. Não é um livro grande, mas é, sem dúvida, um grande livro.
Religião e diálogo inter-religioso é o título da mais recente publicação de Anselmo Borges, que mãos amigas me fizeram chegar e que, agora mesmo, acabei de ler.
É um texto com densidade, espessura e alma. Transporta com ele a vibração de alguém que milita no que apresenta. É obra de um homem culto e, coisa nada despicienda, de um homem livre.
Antes de mais, o Autor cumpre uma missão semelhante à que Zubiri atribuía a Ortega em finais do século XIX e princípios do século XX. Trata-se de uma missão ressoadora em relação ao melhor que se vai pensando e dizendo pelo mundo acerca desta temática.
Com efeito, Anselmo Borges faz ressoar um conjunto de preocupações e propostas que têm vindo a fazer caminho nos últimos tempos.
Por estas páginas desfilam assim as questões mais inquietantes (como a multiforme tipologia do fenómeno religioso) e as interpelações mais aliciantes (designadamente o problema da violência, do fundamentalismo, o lugar do religioso na escola pública, a verdade em todas as religiões, a complementaridade entre elas e o lugar dos ateus em toda esta discussão).
Foi sempre difícil (e continua a não ser fácil) conciliar a religião com o diálogo. E, no entanto, esta articulação é fundamental. Ainda sobram muitos preconceitos que facilmente desaguam numa combustão e delapidam os melhores esforços.
Partindo da referência ao tempo-eixo na introdução, podemos dizer que, de certa forma, vivemos uma época também ela axial para o diálogo e, consequentemente, para a paz.
A tese de Hans Küng (por muitos assumida) é recordada: não haverá paz no mundo enquanto não houver paz entre as religiões.
O diálogo não amortece as convicções. Pelo contrário, fortalece o testemunho. Ver cada religião no conjunto não obscurece a sua força intrínseca, antes empresta um novo vigor à sua identidade.
Este é um domínio em que o todo tende a ser visto a partir das partes. É importante que nos habituemos a ver também cada parte a partir do todo. As sementes do Verbo, de que já falava S. Justino, não deixam ninguém de fora. Não professamos nós que o Espírito sopra onde quer?
Numa altura em que a política é atravessada pela adversidade, seria de esperar que a religião fosse olhada como oportunidade.
Infelizmente, o panorama não é entusiasmante e nem sempre as diversas configurações religiosas têm sabido responder às aspirações mais fundas da hora presente.
No fundo, as religiões ainda não conseguiram constituir a alternativa de que a humanidade precisa. Continuam a portar-se como a redundância que a humanidade lamenta. Também as religiões, de facto, são trucidadas por conflitos e por uma legião interminável de vítimas. No fundo, também a religião certifica que o ser humano tem dificuldade em conviver com o diferente.
Tudo isto toca um problema decisivo, que as religiões transportam em si e que nem sempre sabem gerir entre si: o Absoluto.
Esta é, sem dúvida, uma aspiração a que a religião dá um horizonte de sentido. Mas é preciso perceber que o Absoluto transcende todas as configurações. O Absoluto está presente (mas não prisioneiro) nas instituições.
Tem havido muitas tentativas de diálogo. Mas ainda não se obteve uma plataforma de encontro permanente.
É preciso, como assinala o livro, passar do multi para o inter. A multiculturalidade, que se observa, há-de assumir a forma de uma interculturalidade, que importa consolidar.
Eis, portanto, um livro precioso para a compreensão do presente. E que certamente se vai transformar numa referência indispensável durante muito muito tempo no futuro.
Portugal carecia de um livro destes. Parabéns a Anselmo Borges, que soube suprir esta carência e dar corpo a esta urgência.
O religioso resplandece aqui como questão humana. Uma questão humana básica. E uma questão humana decisiva. Porque abrangente. Porque mostra como tudo (a começar por Deus) tem que ver com tudo!