1. A vida de um teólogo raramente é acontecimento. A morte de um teólogo dificilmente será notícia.
É por isso que Raimon Panikkar é um nome que dirá pouco, ou quase nada, à maioria das pessoas.
E, no entanto, é alguém com uma trajectória muito interessante em vários domínios do pensamento com destaque para a filosofia e a teologia.
A sua vida foi longa e a sua obra extensa. Faleceu no passado dia 26 de Agosto aos 91 anos de idade.
2. Raimon Panikkar especializou-se bastante no diálogo inter-religioso extraindo as maiores ilações da experiência que acumulou na Índia.
Acentuou, particularmente, a religião como religação.
Esta acepção, sendo genuína, corre o risco de ser perigosamente subestimada. O facto religioso é, não poucas vezes, indissociável de um ensimesmamento que, radicalizado, conduz à violência e à desintegração.
Não deixa de ser sintomático que uma religião, para se afirmar, acabe por se desintegrar.
É que, quando ela pretende afirmar-se excluindo as outras, esbate-se a si mesma.
A essência da religião é o que liga, não o que afasta, não o que exclui.
Raimon Panikkar dispensou sempre uma grande atenção a esta dimensão.
A religião, para ele, era essencialmente religação não apenas do Homem a Deus, mas religação do universo consigo mesmo descobrindo-lhe a sua coesão e sentido.
Daí a pertinência da sua intuição cosmoteândrica, propugnando uma interacção entre Deus, o Mundo e o Homem.
Este não possui uma dupla cidadania, uma na sociedade e outra na religião. Está tudo implicado a partir do acto de existir.
3. O religioso não surge como um fenómeno sobreposto ao humano.
O religioso é mais que religioso. É, autenticamente, humano. São, de facto, seres humanos que optam pela fé, por uma vivência pessoal e por uma articulação comunitária da sua ligação ao divino.
Nas mais diversas experiências, há uma unidade que subjaz. No fundo, «o Ser está escondido em todos os seres».
As diferenças não podem ser vistas como separações. As diferenças são legítimas, as separações são sempre prejudiciais.
O religioso certifica o Homem como um ser no qual late algo mais que o tempo e o espaço. Este mais não tem limites: é infinito, é misterioso e é relacional.
Raimon Panikkar ajuda-nos a perceber que «a realidade «não está formada nem por um bloco único — seja este divino, espiritual ou material — nem por três blocos — o mundo dos deuses, o mundo dos homens e o mundo da física —, como se de um edifício de três pisos se tratasse».
Acima de tudo, «a realidade está constituída por três dimensões entrelaçadas umas nas outras, de maneira que não só uma não existe sem a outra, mas também que estão dispostas inter-in-dependentemente».
Esta implicação estende-se à concepção do tempo e da eternidade. O tempo não é o que está antes e a eternidade não é o que vem depois.
Cada momento «é habitado pela outra face “eterna”, formando assim a tempiternidade».
4. Esta visão integradora cura o abismo que se cavou, a certa altura, entre o material e o espiritual e, mais vastamente, entre o secular e o sagrado, entre o interior e o exterior, entre o temporal e o eterno.
Como é óbvio, não se trata de desvalorizar as diferenças, mas de termos presente a trama de relações e de nos tornarmos conscientes das interdependências e conexões.
Muitas vezes, os teólogos são incompreendidos porque trazem para o centro aquilo que está na periferia, no esquecimento.
A Raimon Panikkar devemos a superação de uma matriz dualista entre o religioso e o humano.
A fé não se esgota na celebração no templo. «O serviço à terra é também um serviço divino, tal como o amor a Deus é também um amor humano».
O que existe é uma realidade que «tem muitas moradas e apresenta diversas dimensões, mas que não divide a vida em secções».
Tudo pode resumir-se nisto: «se eu subir à montanha, lá encontrarei Deus, mas se, igualmente, penetrar no coração da divindade, aí encontrarei o mundo».
Tudo tem a ver com tudo.