Um escritor é, quase sempre, visto como um émulo para outro escritor. Mas Miguel Torga bem pode servir de fonte de inspiração para qualificar a trajectória (a)teologal de José Saramago: «Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de O negar, mas nunca a força de O esquecer».
Saramago sempre se assumiu como ateu. No fundo, não deixava de ser crente. Acreditava que Deus não existe. Mas, a seu modo, mantinha uma relação intensa, embora tumultuosa, com o divino.
A crença não é um exclusivo da atitude teísta. Ela abrange também (e bastante) a posição ateísta. Mas, apesar de tudo, há pontos de contacto.
Zubiri tematizou, abundante e magistralmente, esta questão. A relação com Deus pode fazer-se pela via da afirmação, pela via da negação e até pela via da indiferença.
E, nesta diversidade, os pontos de contacto não escasseiam. Miguel de Unamuno percebeu isto muito bem quando rubricou a célebre frase: «Nada nos une tanto como as nossas discordâncias».
Dava para ver que o ateísmo de Saramago era particularmente reactivo e assaz virulento. Notava-se que o problema era sobretudo com a Igreja. Deus era, portanto, a vítima das imagens desfocadas e dos discursos obscuros de muitos crentes.
Mas já o Vaticano II responsabiliza a debilidade do testemunho e muitos crentes como um dos factores que mais contribui para o alastramento do ateísmo.
Por vezes, penso que o ateísmo é o irmão gémeo, embora desavindo, da fé.
À superfície. nada os aproxima. Mas, na profundidade, há muito que os vincula.
Deus é, sem dúvida, a questão mais humana. Deve ser também a mais humanizante.
Na morte de José Saramago, curvo-me perante a sua memória e a sua obra. Não me revejo em tudo. Mas reconheço um grande fidelidade aos valores que sempre professou.