Eu sei, todos sabemos, que é muito doloroso pôr o dedo em certas feridas. Sobretudo nas nossas. São as que doem mais. Porque são as nossas.
É sempre mais fácil apontar as feridas dos outros. Que também as podem ter. Mas não esqueçamos as nossas.. Que, no limite, podem agravar as feridas dos outros.
Temos uma missão: apontar caminhos. Mas como se nós mesmos não os pisamos?
Claro que ninguém é impecável, irrepreensível. Mas haja ao menos humildade. E partamos do princípio que lá fora, onde nem tudo está bem, mora, pelo menos, gente humilde.
Temos a melhor mensagem do mundo. Mas, em contrapartida, não abdicamos de ter, muitas vezes, práticas em sentido oposto. Que credibilidade a nossa?
Temos de ter presente que os grandes problemas da Igreja não são apenas os que chegam do exterior. São, antes, o que nascem no seu interior.
De resto, não esqueçamos a prevenção de Jesus: «Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro»(Mc 7, 15).
Há, sem dúvida, desafios que vêm de fora. Não os podemos desatender. Mas há, acima de tudo, deficiências que emergem a partir de dentro: falta de oração, falta de missão, falta de profecia, falta de fraternidade.
Quando as coisas não correm bem, voltamo-nos para fora e apontamos o dedo. Não digo que não haja factores exógenos (se é que, para um cristão, pode haver algo exógeno) a condicionar fortemente a acção da Igreja. Importa, porém, que não nos desviemos do núcleo do problema: ele mora no nosso interior.
A mudança tem de começar, pois, dentro, no fundo. Fazer profecia tem de ser um desígnio global. É bom chamar a atenção para o que está mal lá fora. É imperioso emendar o que não está bem...cá dentro!
Não recuou no caminho. Não vacilou perante as ameaças. Não abdicou de lutar. Não deixou de perseverar.
Foi incompreendido. Foi incomodado. Foi atacado. E foi morto, liquidado.
Faz hoje, 4 de Abril, 42 anos que Martin Luther King tombou sob o crivo impiedoso de balas assassinas.
Mas também a sua foi uma morte morticida.
Não sei porquê, mas nos últimos tempos tenho-me lembrado muito dele.
Precisamos, urgentemente, de homens como Luther King. Que não tenham medo em tocar nas feridas. Que não usem (nem abusem) de eufemismos. Que sejam íntegros e verticais.
Há mortes que sabem a vida. A vida nova. A vida outra. A vida pura. A vida refrescante.
Quem morre assim morrerá?
Nos últimos dias, não se fala de outra coisa nesta (habitualmente) pacata cidade de Lamego.
Um jovem de nome Artur perdeu a vida num passeio de finalistas.
Muita gente tem vindo ter comigo, incluindo alguns pais que também tinham os filhos nessa viagem.
Que dizer?
Não digo nada.
Rezo e partilho a dor.
Há momentos em que as palavras soam a puro fraseado sem substância.
As palavras existem para dizer a vida, não a morte.
A única palavra é a palavra da presença. De uma presença humilde, orante, fraterna e solidária.
Os meus sentidos pêsames aos pais, irmãos e amigos do Artur.
O céu parece ter pressa em receber os bons...
Neste dia de alegria, continuam a soar ecos de escândalos que não podem deixar de nos envolver.
Há proporções que estão a crescer e limites que, porventura, estarão em vias de ser ultrapassados.
Os desvios são muitos e dolorosos.
Há preocupações que deviam estar concentradas nas vítimas e parecem estar orientadas sobretudo nos agressores e nas instituições.
E até as comparações parecem desfocadas.
Até quando, meu Deus, toda esta tormenta?
Há muito a fazer e bastante a escutar.
Não deixemos de ouvir o clamor das vítimas.
Não deixemos de prestar atenção a quem nunca foi ouvido.
O Espírito paira em todos.
Aprendamos a lição deste dia de Páscoa: para Deus sobe-se descendo.