1. Uma regra existe para ser observada. Mas, como é sabido, não há regra sem excepção.
E se a regra tem de ser respeitada, a excepção também tem de ser atendida. Na regra, seguir-se-á a regra. Na excepção, a atitude também tem de ser de excepção.
Será que já nos apercebemos de que se todas as leis fossem seguidas, nenhuma mudança se faria e, pior, a injustiça ter-se-ia perpetuado?
Portugal seria independente se os nossos antepassados fossem obedientes a Castela?
Quantas vidas não se teriam perdido se Aristides de Sousa Mendes cumprisse, estritamente, as ordens do Governo?
O nosso país seria uma democracia se os militares de há três décadas fossem obedientes ao Regime?
O leste da Europa viveria em liberdade se figuras como Lech Walesa, Vaclav Havel ou o Padre Jerzy Popielusko fossem obedientes ao poder constituído?
Noutro plano, o Sporting teria vencido a Taça das Taças em 1964 se Morais tivesse sido obediente ao treinador? Este, como se sabe, proibira-o de marcar cantos directos. Pois foi de canto directo (e, portanto, de uma desobediência) que resultou a vitória.
2. É óbvio que não se pode transformar a excepção em regra. Mas também não é lícito apelar para a regra quando estamos diante de uma excepção.
Os apóstolos desobedeceram à ordem do tribunal que os impedia de falar ou ensinar em nome de Jesus.
Optaram por obedecer antes a Deus que aos homens. Prevaleceu o ditame da consciência: «Não podemos calar o que vimos e ouvimos» (Act 4, 20).
Os cristãos dos primeiros séculos desobedeceram em massa às imposições dos juízes que os intimavam a abandonar a fé cristã.
Pagaram com o sangue a sua ousadia. Mas o seu martírio fez com que muitos aderissem a Cristo: «Sangue de mártires, semente de cristãos».
3. O próprio Jesus deu sempre mostras de uma soberana liberdade. Para com o Pai cultivou uma obediência incondicional (cf. Jo 4, 34). Já diante das leis dos homens (incluindo as leis religiosas) algumas vezes arriscou a desobediência.
Respeitava o sábado, mas não hesitou em desobedecer a algumas prescrições sobretudo em vista de um bem maior: o bem das pessoas (cf. Mt 12, 1-14).
Sabia também que a Lei estipulava que toda a mulher apanhada em adultério fosse apedrejada. Era a Lei e ponto final.
Uma vez mais, Jesus desconcertou. Não disse que a mulher procedeu bem. Mas não apoiou a condenação (cf. Jo 8, 11).
Era tão fácil dizer: «Cumpra-se a Lei». Mas Jesus arrisca desobedecer a uma lei por causa de uma outra lei, que Ele mesmo anuncia: a lei do amor.
4. Confesso que até a mim me arrepia esta soberana liberdade de Jesus. E assumo que tenho muita dificuldade em imitá-Lo. As convenções são muito fortes. E as pressões acabam por se fazer sentir.
Uma obediência estrita ajuda a manter a ordem. Mas nem sempre contribui para a salvaguardar a verdade e a justiça.
A obediência deve ser feita ao bem maior. A verdade e a justiça estão por cima da ordem e da conveniência.
Às vezes, é preciso abalar a ordem, sobretudo quando a ordem é injusta. John Bunyan não tinha dúvidas: «Prefiro ficar na prisão a atraiçoar a minha consciência».
Não basta não promover a injustiça. Urge que não nos conformemos com ela. Calar ante a injustiça é pactuar com ela.
Luther King denunciava: «A nossa geração vai ter de se arrepender não apenas das odiosas palavras e acções dos maus, mas também do confrangedor silêncio dos bons».
Muitas vezes, a ordem encobre muita injustiça. Daí que, perante uma ordem injusta, desobedecer desponte como um imperativo.
Decidir não segundo a simples lei, mas segundo os ditames da consciência (o santuário secreto de que fala o Vaticano II) é um dom de Deus. É um sinal de fidelidade ao espírito do tempo e ao tempo do Espírito.
A obediência é uma virtude. Mas, em certos momentos, a desobediência pode ser uma necessidade.
Quando percorremos a história da humanidade, uma pergunta se acerca de nós: que seria do mundo sem a (persistente) desobediência de muitos?