1. Tal como a fé, também o ateísmo se decide mais no terreno da vida do que no campo das palavras.
E, neste particular, não é o ateísmo dos que se consideram ateus que mais me preocupa. O que mais me preocupa é o ateísmo de muitos que se dizem crentes.
O problema está mesmo aí: no facto de apenas se dizerem crentes.
Deus verberou sempre tal comportamento: Pela boca do profeta, denuncia: «Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim» (Is 29, 13; Mt 15, 8).
É neste sentido que até Deus pode ser considerado ateu. Porque Ele acaba por ser a maior negação de tantas concepções de Deus que por aí se tecem e apregoam.
2. João Paulo II, sobretudo nas proximidades do ano 2000, evocou, não poucas vezes, os momentos em que os cristãos desfiguram o rosto de Deus.
Esta situação faz-me lembrar a reacção que teve uma conhecida figura pública ao inaugurar uma estátua sua: «Este não sou eu!».
Na sua óptica, quem olhasse para a estátua não a relacionaria com a sua pessoa.
Será que quem olha para o nosso comportamento de crentes fica com vontade de se aproximar de Deus?
Não esqueçamos que já o Concílio Vaticano II nos avisava de que um dos factores que mais concorre para o ateísmo é a falta de testemunho dos que se dizem crentes.
O Deus que está nos nossos lábios, o Deus que está na nossa vida terá alguma afinidade com o Deus que Se revelou em Jesus Cristo?
Onde está o amor, a compaixão, a autenticidade, a misericórdia, justiça, a partilha e a paz?
Nós que, tantas vezes, nos empenhamos em demonstrar Deus, que fazemos para mostrar Deus?
3. Com Xavier Zubiri aprendemos que, acerca de Deus, a mostração vem antes da demonstração.
A presença de Deus é, como nos afiançou Jesus, uma questão de transparência (cf. Jo 14, 9).
Jesus foi a transparência do Pai. Foi transparência pelas palavras. Foi transparência pela vida. Foi até transparência pela morte.
Nós vemos essa transparência de Deus nas vidas que se dão, nos esforços que se fazem, na justiça que se constrói, na paz que se edifica, no amor que se reparte.
As testemunhas conseguem (mesmo) muito mais que os mestres. As testemunhas são os verdadeiros mestres.
Acerca de Deus, não é a razão que convence. É o amor que atrai.
Os antigos diziam que a vivência do amor fez mais pela difusão do Cristianismo do que todos os tratados teológicos.
Por isso é que Hans Urs von Balthasar costumava repetir que «só o amor é digno de fé». Só o amor oferece credibilidade à fé.
Daí que, como refere a Tradição, o apóstolo João se resignasse a um único tema, quando era convidado a falar: «Filhinhos, amai-vos uns aos outros»!
Replicavam-lhe que, embora esse tema fosse importante, podia diversificar o seu discurso.
Mas o apóstolo, que em jovem era conhecido pela sua fogosidade, respondia invariavelmente: «Só o amor é necessário».
4. Neste contexto, é de realçar a ênfase que Ruiz de la Peña colocou na «recomposição do rosto de Deus».
Não é que Deus necessite de um qualquer retoque. Nós é que precisamos de ver Deus tal como Ele é e tal como Ele Se nos revelou.
Ao contrário do que ainda se insinua, Deus não é inimigo do homem nem o travão das suas esperanças. Deus é aliado do homem; é «paixão pelo humano».
Não sufraga acriticamente a ordem social vigente. Antes a questiona e transforma. «Deus faz dos últimos primeiros, dos pequenos grandes, dos pecadores justos e dos que choram bem-aventurados».
Acontece que, como alerta González-Faus, «conhecer a Deus é coisa só de um coração limpo pela misericórdia».
A experiência de Cristo é a experiência de uma humanidade total. Foi na Sua humanidade que aconteceu a revelação definitiva de Deus.
Com efeito, «Jesus não revela Deus falando sobre Ele, mas deixando-O transparecer nas circunstâncias concretas da Sua vida».
Muito bem nos faria imitar o ateísmo de Deus. Podíamos mesmo pedir-Lhe: «Meu Deus, livra-nos de “deus”».
No fundo, deixemos Deus ser o que é. E não nos apeguemos àquilo que imaginamos que seja…