Na madrugada da minha vida, também sonhei.
Sonhei com uma vida melhor e com um mundo diferente.Sonhei com o fim das guerras e com o termo das injustiças.
Sonhei que era possível abater muros e construir pontes.Sonhei que os ideais sobrelevariam os interesses e os cálculos.
Sonhei que a transformação estava em marcha.Sonhei que, no tempo expectável da minha existência, iria ver a realidade que as esperanças iam desenhando.
Eram os anos 60, a virar para os anos 70.À distância a que, agora, já nos encontramos, é fácil tingir esses tempos e avaliar os sentimentos que neles acalentávamos. Não é difícil dizer que éramos todos ingénuos.
Talvez fôssemos. Mas acreditem que éramos felizes assim.Sentíamos que qualquer coisa nova pairava no ar e que, depressa, se alojava nos nossos corações.
Não conseguíramos nada. Mas acreditávamos em quase tudo. Era o tempo das gaivotas a voar e das papoilas a florir.
E não é a Primavera a estação que mais nos encanta? Não é nela que colhemos, mas a sementeira chega a ser mais entusiasmante que a própria colheita.Não é, tantas vezes, a véspera de uma festa mais sentida que a própria festa?
A vida ensina-nos que somos, frequentemente, seres da tarde que preparam um amanhecer que pode acabar por nunca surgir.
Mas mesmo que a manhã não venha, alguém poderá provar que não valeu a pena o esforço do tempo de véspera?
Na madrugada da minha vida, sonhei com um mundo em que os sorrisos eram sinceros.
Sonhei com um tempo em que ninguém seria discriminado por qualquer motivo.
Sonhei com um mundo em que as pessoas fossem respeitadas por serem pessoas.
Sonhei com um mundo em que todos se preocupassem com todos.
Sonhei, no fundo, com o mundo em que os sonhos de criança e de jovem não fossem devorados pelos adultos. Sonhei, enfim, com um mundo de mãos unidas, sem desconfianças.
Hoje, continuo a sonhar e, apesar de tudo, a acreditar. Tenho, porém, quase a certeza de que não verei o que gostava de ver. Será, porém, isso motivo bastante para me sentir frustrado?
Foi com este estado de espírito que cheguei ao encontro do grande Luther King e do sermão que proferiu um dia antes de ser assassinado.
Confesso que, como a ele, também a mim me custa olhar para a vida como um máquina destruidora de sonhos: «A vida é uma história contínua de sonhos desfeitos». Tantas vezes nos passa pela cabeça a ideia de que «o nosso esforço de nada vale».
Acontece que «a vida é mesmo assim. E o que me dá felicidade é que ouço uma voz que vem do fundo dos tempos para me dizer: "Pode não vir hoje ou amanhã, mas é bom que tenhas o sonho dentro do teu coração. É bom que tentes". Talvez vós também não o vejais. O sonho pode não se realizar, mas, se tendes o desejo de o realizar, isso já é bom».
Importa ter presente que Deus não nos julgará por uma parcela do nosso ser, mas pela totalidade da nossa vida. «Deus sabe que os Seus filhos são frágeis. O que Deus exige é que tenhamos o nosso coração cheio de rectidão».
Se dermos conta de que ainda nos falta rectidão, peçamos a Deus que no-la dê. O importante não é tanto o que conseguimos, mas o que tentamos.
«Fazei com que alguém possa dizer de vós: "Pode não ter atingido o cume mais alto, pode não ter realizado todos os seus sonhos, mas tentou".Não é maravilhoso que digam isso de nós? "Ele tentou ser um homem bom. Tentou ser um homem honesto". E eu ouço uma voz que exclama: "Eu aceito-te. Recebe a Minha graça porque tiveste sempre no teu coração a vontade de ser bom"».
Não nos podemos deslumbrar nos momentos de euforia, nem deprimir nas horas de abatimento. O que não podemos jamais é renunciar. Não podemos renunciar ao sonho nem ao esforço.
Às vezes, até os piores instantes podem ser fecundos. A noite amedronta porque é escura, mas não é «na noite escura que se vêem as estrelas»?
Urge porfiar não por lugares, não por interesses, mas, acima de tudo, por ideais, por valores. De uma vez para sempre, é hora de nos decidirmos «a ser homens, a ser gente».
Pela frente, «temos dias difíceis». Ter uma vida longa é uma aspiração legítima para todo o ser humano. Luther King não fugia à regra, mas o mais importante, para ele, era «fazer a vontade de Deus».
Luther King não viu a realização do sonho. O fim da discriminação racial veio mais tarde. Mas foi o seu sonho e a coerência do seu testemunho que permitiu desbravar caminhos.
Por isso, ele pediu para ser lembrado não como o homem que conseguiu, mas como o homem que sonhou, o homem que tentou. Que tentou «consagrar a sua vida ao serviço do próximo». Que tentou «amar alguém». Que tentou «ser justo». Que tentou «amar e servir a humanidade».
Não pediu para ser recordado como alguém consensual, mas como um chefe de partido: do partido da justiça, do partido da paz, do partido da rectidão.
Eis a única herança que conta. Não é o dinheiro. Não são as coisas valiosas nem o luxo da vida. «A única coisa que quero deixar é uma vida de militância, de testemunho».
Os sonhadores podem ser eliminados. Mas o sonho nunca morrerá!