1. O diagnóstico não pode ser mais devastador: «O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada e os caracteres corrompidos.
A prática de vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia.
Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada.
O tédio invadiu as nossas almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés.
A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui».
2. As consequências não demoram: «A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade.
A população dos campos puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora: ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva apenas um egoísmo feroz e uma devoção automática.
A intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada.
Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Todas as consciências certificam a podridão, mas todos os temperamentos se dão bem na podridão! A corrupção toma o lugar da filosofia!».
E o povo? «O povo paga, que é a única coisa que faz além de rezar. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam. Paga àqueles que o espoliam. Paga aos que o atraiçoam. Paga tudo, paga para tudo».
Não tendo princípios ou não tendo fé nos seus princípios, Portugal «não pode propriamente ter costumes. Com uma política de acaso, com uma literatura de retórica, com uma legislação desorganizada, não se pode deixar de ter uma moralidade decadente».
3. A classe média «vive do Estado. A velhice conta com ele como condição da sua vida. Logo desde o começo, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia da sua tranquilidade».
Resultado? «Uma pobreza geral. Com o seu ordenado, ninguém pode acumular, poucos podem equilibrar-se. Tudo é pobre: a preocupação geral é o pão de cada dia.
Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência. Nunca temos, por isso, a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.
Serve-se não quem se respeita, mas quem se vê no poder. A pessoa, não se respeitando a si, não respeita os outros: mente, atraiçoa e habitua-se a medrar na intriga.
Até os cafés estão silenciosos, tristes. A conversação extinguiu-se. Ninguém possui ideias originais, próprias. Há quatro ou cinco frases feitas de há muito, que se repetem. Depois, boceja-se.
Perdeu-se o sentimento de cidade e de pátria: o cidadão desapareceu e todo o país não é mais do que uma agregação heterogénea de inactividades que enfastiam.
Ninguém vive no seu interior. Vive-se na rua, ou no café. A casa aborrece. A família não nos interessa».
4. O país não está bem. Acontece que já não está bem desde há muito. E, apesar disso, vai-se aguentando.
Este é um texto com mais de cem anos. Foi escrito por Eça de Queiroz em 1871.
Aliás, já dois mil anos antes de Jesus nascer, um sacerdote vaticinara: «O nosso mundo atingiu o seu ponto crítico. Os filhos não ouvem mais os pais. O fim do mundo não pode estar muito longe».
Os ciclos mudam, os regimes acabam e o mundo vai-se mantendo…apesar de todas as crises, apesar da crise contínua.
Se repararmos bem, quando é que não estivemos em crise? Não será a crise que funciona como um permanente acicate para a nossa sobrevivência?
É importante amenizar o discurso, mas não deixemos de prestar atenção aos avisos que nos são feitos.
Quem nos avisa, nosso amigo é.