1. No princípio, era a inquietação. A inquietação estava com Deus. E a inquietação era o próprio Deus.
Com efeito, quem ama, não ama só em si nem para si. Quem ama preocupa-se, solidariza-se, sai de si.
O amor que é Deus não cabe em Deus. Explode na criação. O big bang terá sido realidade e é seguramente sinal: sinal de um amor que explode permanentemente no mundo.
O mundo criado por Deus não é bom; é muito bom (cf. Gén 1, 31). Só que o Homem, coroa da criação, resolve complicar. Deslumbra-se consigo mesmo e afasta-se de Deus. Quer ser como Deus andando longe de Deus.
A ambição, porém, tolhe-o e atraiçoa-o. Depressa se apercebe do logro. Sente-se mal e tem medo. Sabe que, por si mesmo, não consegue reencontrar o caminho abandonado e a felicidade perdida.
2. Este já não era um problema de Deus. Acontece que Deus não é frio. A Sua justiça tem calor, está adornada pela compaixão. Decide, então, ajudar o Homem. Fala a linguagem do Homem. E, como se não bastasse, faz-Se Homem.
Como diziam os escritores antigos, Um da Trindade fez-Se Um de nós. Para quê? Para nos reconduzir à felicidade, ou seja, a Ele, a Deus.
Sto. Ireneu sublinha, com uma ênfase para nós inesperada, que «o Filho de Deus fez-Se o que nós somos para que nós possamos ser o que Ele é».
Deus leva o Homem a sério, muito a sério. Diria mesmo que é preciso ser Deus para amar assim o Homem.
3. Seria necessário tanto? Deus, para nos salvar, podia fazer um simples decreto. Não é próprio de Deus ter poder para tudo?
Só que Ele quis vir até nós, morar connosco. Mas, nesse caso, poderia aparecer num palácio sob a figura de um rei. Sempre seria uma forma mais condizente com Deus, o rei dos reis.
Aliás, o Messias era esperado como sendo o continuador de David, aquele rei que mais saudades deixou no povo eleito; aquele que sulcou, nas encostas dos séculos, uma nostalgia tingida de esperança.
Sucede que Deus decide aparecer não num palácio, mas num curral. Não tem soldados a protegê-lo, tem apenas a companhia de Maria, de José e, talvez, de alguns animais.
O sinal de Deus — dizem os anjos aos pastores — é um menino, um menino deitado numa manjedoura (cf. Lc 2, 12).
Tudo isto é desconcertante, sem dúvida. O normal é que o grande conviva com o grande. Esquecemos, porém, que isso é apenas humano. Divino não é que o grande caiba no grande. Divino é o infinitamente grande caber no infinitamente pequeno.
Fernando Pessoa acertou em cheio quando escreveu que «o melhor do mundo são as crianças». Até Deus quis ser criança.
Porquê? Guilherme de Saint-Thierry dá uma explicação muito luminosa: «Deus viu que a Sua grandeza suscitava no homem resistência. Então, Deus escolheu um caminho novo. Tornou-Se um Menino. Tornou-Se dependente e frágil, necessitado do nosso amor. Agora – diz-nos aquele Deus que Se fez Menino – já não podeis ter medo de Mim, agora podeis apenas amar-Me».
4. O conhecimento, disse Karl Jaspers, vem pelo espanto. Já o amor vem pelo encanto. Quem encanta como as crianças? E quem se encanta como as crianças?
Compreende-se, deste modo, que o Natal seja a festa das crianças. Será a festa de todos nós se, como as crianças, nos deixarmos reencantar pela vida, pela bondade, pelo amor, por Deus. Por um Deus que continua a estar nas crianças. E em todos os que aceitam ser como elas: pequenas, simples e humildes!
O bulício das crianças aproxima-as da inquietação de Deus. Na sua candura, elas já sabem que, na vida, só vence quem se movimenta, quem se incomoda, quem se desinstala. Também elas já intuem que existir é desassossegar e amar é inquietar.
É por isso que as crianças estão no coração do Natal. É por isso que o Natal é das crianças. E dos que são como elas: inconformados!