1. Nem tudo está bem na Igreja eis uma evidência que muitos subscrevem.
Já dizer que a culpa não é do Papa constitui uma afirmação em que quase ninguém se revê.
Também eu concordo que nem tudo está bem na Igreja. E o próprio Papa é o primeiro a reconhecê-lo.
A poucos dias da sua eleição, verteu esta confissão que poucos ousariam fazer: «Quanta sujidade existe na Igreja! A Igreja parece uma barca que mete água por todos os lados. As vestes e os rostos da Igreja estão sujos. E somos nós mesmos a sujá-los».
Bento XVI tem sido a voz mais inconformada acerca do que se passa na Igreja, apontando problemas e apurando responsabilidades.
É por isso que considero uma enorme injustiça o desamor que se vota a Bento XVI e que se devotava já a Joseph Ratzinger. Trata-se, contudo, de um dos lugares comuns mais difundidos e entranhados.
É pena, acima de tudo, porque fere a verdade. Ao contrário de muitos (que respeito, como é óbvio), estou seguro de que Bento XVI não é o responsável pela crise da Igreja. É, sim, a bússola para vencer a crise.
De resto, se repararmos bem, tem todos os condimentos para justificar o nosso apreço. É corajoso. Não se importa de estar em minoria. Proclama o que crê e diz o que sente. Aponta para o essencial. É incompreendido e contestado. Não teme ser impopular.
2. Poucos como ele têm tido o desassombro de descrever a situação da Igreja sem o menor subterfúgio ou o mais leve rodeio.
Desde há muito, está consciente de que a Igreja é uma oportunidade frequentemente transformada em obstáculo: «Se, antigamente, a Igreja era, incontestavelmente, a medida e o lugar do anúncio, agora apresenta-se quase como o seu impedimento».
Regra geral, alega-se que o problema é a falta de integração no mundo. Pois o problema parece ser precisamente o contrário: um excesso de integração, quase a resvalar para a dissolução.
Não raramente, com efeito, «observamos um estranho oportunismo da Igreja diante das tendências do tempo, inclinando-se de repente para a adaptação quando deveria haver resistência».
Isto significa que, em vez de se assumir como a diferença e a alternativa, a Igreja se resigna a ser a repetição e a redundância.
Não é assim que se serve a humanidade. O então Cardeal Joseph Ratzinger disse, no magnífico Diálogo sobre a Fé, que a Igreja era chamada a ser «oposição à ideologia da banalidade que domina o mundo». Sucede que, por vezes, parece que se prefere fazer, dentro da Igreja, oposição à doutrina da própria Igreja.
Daí que «estar pronto para a oposição e a resistência seja, indubitavelmente, uma missão para a Igreja».
3. Não é pela tendência dominante que a Igreja se há-de nortear. «Não se pode contestar — nota Bento XVI — que a maioria pode enganar-se e os seus erros não se referem apenas a questões marginais».
Não é sequer «o clero que prescreve o que é ou deve ser a Igreja». O sacerdócio não é uma estrutura de poder nem tampouco uma instância de decisão. É, antes de mais, a sinalização «do vínculo da Igreja ao Senhor Jesus».
No sacerdócio, a Igreja supera-se a si mesma, mostrando que ela «não surge através de assembleias, acordos, erudição ou força organizativa». A Igreja deve-se sempre — e só! — a Cristo.
É Cristo que conduz a Igreja, «não são os homens que a moldam a seu bel-prazer».
Se permanecemos na Igreja é precisamente porque, apesar de todas as suas fragilidades, é «ela que nos dá Jesus Cristo».
4. É sobretudo aos padres e aos bispos que incumbe certificar esta presença de Cristo: pela palavra dos lábios e pela palavra da vida.
Bento XVI verbera os pastores que, «para evitar conflitos, deixam que o veneno se espalhe. Um bispo interessado apenas em não ter aborrecimentos assusta-me».
A tranquilidade é uma aspiração de todos, mas não pode ser uma prioridade do seguidor de Cristo.
Uma única paz lhe é lícito gozar: a paz da permanente inquietação!