1. Uma coisa (muito saudável) é a separação entre a Igreja e o Estado. Outra coisa (bastante prejudicial) é o afastamento entre a fé e a vida. Perceber aquela fronteira e aceitar esta implicação é o segredo da missão e a chave da convivência.
A separação entre a Igreja e o Estado não alicerça um qualquer afastamento entre a fé e a vida. É bom que haja aquela separação. É fundamental que não se verifique este afastamento.
Não há, aqui, contradição. A Igreja tem uma estrutura diferente do Estado e o Estado tem uma estrutura diferente da Igreja.
Entender esta diferença é essencial para promover a relação e até para fecundar a colaboração. Na sua diferença estrutural, a Igreja e o Estado encontram-se no serviço à mesma humanidade. O Homem, com efeito, é o fim do Estado e o caminho da Igreja.
A Igreja e o Estado só ganham em manter um clima de mútua independência e estreita cooperação. A ambiguidade é negativa e a subserviência é sempre perturbadora.
O lugar privilegiado de presença da Igreja é a sociedade, junto das pessoas, especialmente junto dos pobres.
2. Concretizando os princípios, um cidadão que seja crente sabe que não pode favorecer (ou prejudicar) qualquer credo no âmbito das suas funções na vida pública ou política. Mas isso não o impede de testemunhar em toda a parte (e, portanto, também na sua intervenção cívica e política) a fé que professa.
Nenhum âmbito da existência está vedado ao Evangelho. Será aceitável que se viva a fé em toda a parte excepto na política? Essencial é que haja transparência.
Um cristão não deixa de ser cidadão pelo que a sua cidadania está marcada pela fé. O seu testemunho não consiste em almejar privilégios para a instituição Igreja, mas em promover os valores do Evangelho.
Neste sentido, levar a fé à vida política é não apenas um direito, mas sobretudo um dever, um imperativo.
3. Foi há não muito tempo que o Papa Bento XVI defendeu que a fé não deve afastar os cristãos dos seus compromissos de cidadania. É que, alertou, «viver a vida cristã significa também assumir os compromissos civis».
A verdade é ubíqua e o Evangelho é englobante. Não pode, por isso, ficar circunscrito à intimidade ou limitado à vida privada de cada um.
De facto, «um dos mais importantes aspectos da unidade da vida do cristão» é a coerência entre «fé e vida, Evangelho e cultura».
Numa catequese dedicada a São Máximo, Bispo de Turim do século IV, o Sucessor de Pedro referiu-se à «profunda relação entre os deveres do cristão e os do cidadão».
É bom, por conseguinte, «que os cristãos tomem consciência de que têm algo a dar ao mundo de hoje». E o Santo Padre dá um exemplo: «A política guiada pela ideia da compaixão é diferente da dirigida pela economia e pela técnica».
Trata-se, no fundo, daquilo a que o teólogo Johannes Baptist Metz chamou de «misticismo de olhos abertos», que é «uma característica do misticismo bíblico». Desde logo, porque «todos temos responsabilidade por outros sofrerem».
A espiritualidade não pode ser vista de uma forma ensimesmada, desligada do mundo, vista como uma espécie de refrigério. Metz alerta que «Deus não é só uma terapia, é igualmente um Deus provocador», que nos provoca, que nos impele.
4. Apesar de a crítica constituir um serviço, admitamos que é muito fácil criticar quem está na política. Mais difícil (e também muito mais necessário) é oferecer estímulos para estar na política de um modo diferente, de uma forma consistente, de uma maneira testemunhal.
Esquecemo-nos, muitas vezes, de que, com todas as suas fragilidades, são os políticos que traçam as linhas de actuação por que se rege um povo. São eles, ao nível sobretudo das autarquias, que nos ajudam na resolução dos nossos problemas. E nós, crentes, que contributos lhes fazemos chegar?
Quando se fala de política, imediatamente se pensa nos partidos. E é claro que os partidos são essenciais na vida política. Mas esta não se esgota nos partidos nem no poder que eles visam exercer.
A presença dos cristãos na política há-de ocorrer, acima de tudo, na promoção da justiça.
A Igreja é independente em relação aos partidos. Mas não pode ser neutral em relação à justiça. Ela não toma partido por partidos. Mas tem de tomar partido por causas, por pessoas, por ideais.
Quando a justiça está em causa, calar é um pecado. E se há medo de que a palavra possa ser conotada politicamente, é preciso ter presente que o silêncio não o é menos. Antes, pois, ser conotado com as vítimas da injustiça do que com os causadores da injustiça.
A política não se esgota nos partidos. Tudo é política. Tudo é relevante para a vida da polis, da comunidade. Assumamos a nossa presença. Não tenhamos medo das implicações do nosso testemunho.