1. Na madrugada da minha vida, também sonhei.
Sonhei com um mundo diferente. Sonhei com o fim das guerras e com o termo das injustiças.
Sonhei que era possível abater muros e construir pontes. Sonhei que os ideais sobrelevariam os interesses e os cálculos.
Sonhei que a transformação estava em marcha. Sonhei que, no tempo expectável da minha existência, iria ver a realidade que as esperanças iam desenhando.
Eram os anos 60, a virar para os 70. À distância a que, agora, já nos encontramos, é fácil dizer que éramos todos ingénuos.
Talvez fôssemos. Mas acreditem que éramos felizes assim. Sentíamos que qualquer coisa nova pairava no ar e que, depressa, se alojava nos nossos corações.
Não conseguíramos nada. Mas acreditávamos em quase tudo. Era o tempo das gaivotas a voar e das papoilas a florir.
Não é a Primavera a estação que mais nos encanta? Não é nela que colhemos, mas a sementeira chega a ser mais entusiasmante que a própria colheita. Não é, tantas vezes, a véspera de uma festa mais sentida que a própria festa?
A vida ensina-nos que somos, frequentemente, seres da tarde que preparam um amanhecer que pode acabar por nunca surgir.
Mas mesmo que a manhã não venha, alguém poderá provar que não valeu a pena o esforço do tempo de véspera?
2. Foi com este estado de espírito que cheguei ao encontro do grande Luther King e do sermão que proferiu um dia antes de ser assassinado.
Confesso que, como a ele, também a mim me custa olhar para a vida como um máquina destruidora de sonhos: «A vida é uma história contínua de sonhos desfeitos». Tantas vezes nos passa pela cabeça a ideia de que «o nosso esforço de nada vale».
Acontece que «a vida é mesmo assim. E o que me dá felicidade é que ouço uma voz que vem do fundo dos tempos para me dizer: "Pode não vir hoje ou amanhã, mas é bom que tenhas o sonho dentro do teu coração. É bom que tentes". O sonho pode não se realizar, mas, se tendes o desejo de o realizar, isso já é bom».
Deus não nos julgará por uma parcela do nosso ser, mas pela totalidade da nossa vida. «Deus sabe que os Seus filhos são frágeis. O que Deus exige é que tenhamos o nosso coração cheio de rectidão».
3. Se dermos conta de que ainda nos falta rectidão, peçamos a Deus que no-la dê. O importante não é tanto o que conseguimos, mas o que tentamos.
«Fazei com que alguém possa dizer de vós: "Pode não ter atingido o cume mais alto, pode não ter realizado todos os seus sonhos, mas tentou". Não é maravilhoso que digam isso de nós? "Ele tentou ser um homem bom. Tentou ser um homem honesto"».
Às vezes, até os piores instantes podem ser fecundos. A noite amedronta porque é escura, mas não é «na noite escura que se vêem as estrelas»?
Urge porfiar não por lugares, não por interesses, mas, acima de tudo, por ideais, por valores. De uma vez para sempre, é hora de nos decidirmos «a ser homens, a ser gente».
4. Pela frente, «temos dias difíceis».
Ter uma vida longa é uma aspiração legítima para todo o ser humano. Luther King não fugia à regra, mas o mais importante, para ele, era «fazer a vontade de Deus».
Luther King não viu a realização do sonho. Mas foi o seu sonho e a coerência do seu testemunho que permitiu desbravar caminhos.
Por isso, ele pediu para ser lembrado não como o homem que conseguiu, mas como o homem que sonhou, o homem que tentou. Que tentou «consagrar a sua vida ao serviço do próximo». Que tentou «amar alguém». Que tentou «ser justo». Que tentou «amar e servir a humanidade».
Não pediu para ser recordado como alguém consensual, mas como um chefe de partido: do partido da justiça, do partido da paz, do partido da rectidão.
Eis a única herança que conta. Não é o dinheiro. Não são as coisas valiosas nem o luxo da vida. «A única coisa que quero deixar é uma vida de militância, de testemunho».
Os sonhadores podem ser eliminados. Mas o sonho nunca morrerá!