1. Apesar do sol, parecem sombrios os tempos que vivemos.
E é nestas alturas que mais sentimos a falta não tanto de ideias como de testemunhas. De pessoas de bem. De exemplos que resplandeçam como faróis.
Não há dúvida de que o mundo sente mais a ausência de testemunhas do que de mestres.
A vacuidade que se apoderou da hora presente não está, em primeira instância, nos conhecimentos. Está, acima de tudo, nos comportamentos.
É o vazio que, tingido pelo fútil, faz com que nem o trágico nos pareça tão trágico.
2. Até o trágico se vai tornando trivial, envolvente. Também ele é afectado pela ditadura da banalidade.
Habituamo-nos aos incêndios no Verão e às cheias no Inverno. Já não nos espantam os números da violência doméstica nem os dados da criminalidade.
Altera-se a legislação, mas não se muda a vida. Tudo escorre na direcção de um abismo que nem o mais optimista é capaz de suster.
No meio desta turbulência, os «heróis» (com umas aspas muito grandes) que fazemos desfilar são os que mostram tudo e não revelam nada.
Ficamos deslumbrados com as suas casas, com as suas roupas, com os seus casamentos e separações. Quase sem darmos por isso, somos arrastados pelo vazio que veiculam.
3. Não é a primeira vez que vivemos épocas destas.
Hannah Arendt recorda-nos que «a história já conheceu muitos períodos de tempos sombrios».
São tempos em que «a realidade é camuflada pelos discursos e pelo palavreado de quase todos os discursos oficiais que, ininterruptamente e com as mais engenhosas variantes, vão arranjando explicações para todos os factos desagradáveis».
As sombras chegam aos tempos «pelo discurso que não revela aquilo que é, preferindo esconder-se debaixo do tapete, e pelas exortações que, a pretexto de defender velhas verdades, degradam toda a verdade, convertendo-a numa trivialidade sem sentido».
4. Mas, mesmo (diria sobretudo) nestes tempos, «temos o direito de esperar uma luz. É bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e dos conceitos como da chama incerta, vacilante e, muitas vezes, ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias».
A própria Hannah Arendt oferece-nos dez luzeiros em forma de vidas alentadoras para a nossa vida.
5. Uma dessas vidas é a do Papa João XXIII, que a filósofa judia descreve como sendo «um cristão no trono de S. Pedro».
Curiosa a reacção de uma criada de servir aquando da morte do Pontífice: «Minha senhora, este papa era um verdadeiro cristão. Como é que isso foi possível? Como pôde um verdadeiro cristão sentar-se no trono de S. Pedro? Ninguém se terá apercebido de quem ele era?»
6. Há, obviamente, um exagero e até alguma injustiça. Os papas dos últimos séculos mostraram ser cristãos de fibra, até à medula do seu ser.
Mas não deixa de ser sintomática a reacção de uma pessoa simples.
Na sua maneira de ver, alguém que irradiava o espírito de Cristo não teria grandes condições de ascender naquilo a que, impropriamente, se chama carreira.
7. Sabemos que a bondade de João XXIII lhe trouxe não poucos dissabores. Às vezes, a incompreensão acendeu-se dentro da própria Igreja.
Não era em vão, porém, que um dos seus lemas era precisamente «sofrer e ser desprezado como Cristo».
João XXIII tornou-se uma figura querida porque assumiu, sem o menor constrangimento, o espírito de Jesus.
Para ele, todos, incluindo os ateus, eram filhos e irmãos. A justiça sempre o preocupou e mobilizou.
Conta-se que, um dia, terá perguntado a um trabalhador como ia a sua vida. Ele respondeu que ia mal. Então, o Papa garantiu que ia tratar do assunto.
Houve, no entanto, quem objectasse que, aumentando o salário aos trabalhadores, teria de haver um corte nas obras de caridade.
Resposta pronta do Pontífice: «Então é o que teremos de fazer. Porque a justiça está antes da caridade».
8. São estas atitudes que definem uma vida. E fazem com que as pessoas que as tomam brilhem. Mesmo nas sombras. Sobretudo nas sombras.