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Domingo, 18 de Março de 2018

A. Viver é (também) aprender a deixar

 

  1. Nesta vida, andamos todos à procura de ter, de possuir, de ganhar, de conquistar. Até à igreja costumamos vir com o desejo de obter alguma coisa. É um facto que Jesus nos mandou pedir (cf. Mt 7, 7). O problema é que, não raramente, esquecemos que o segredo da felicidade não está no que se recebe, mas no que se dá.

O caminho da felicidade passa essencialmente por aprender a dar, por aprender a darmo-nos. A Quaresma é um tempo propício para percebermos que há muita coisa para dar e também para deixar.

 

  1. É preciso muita coragem — e enorme humildade — para deixar: para deixar o que temos e o que gostaríamos de ter. Uma coisa é certa: ser discípulo de Jesus começa por um acto de deixar: por deixar as nossas ocupações (cf. Mt 4, 20), por deixar o nosso ambiente (cf. Lc 9, 61) e — no limite — por deixar a própria vida (cf. Mt 10, 37).

Tal é, aliás, o exemplo do Mestre. Nós somos discípulos do Mestre que dá a vida e vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Jesus prefere sempre conjugar o verbo «dar» ao verbo «possuir».


 

B. Aquele que deixa tudo para não perder ninguém

 

  1. No pedaço de Evangelho que escutámos, Jesus anuncia que está próxima a hora de ser glorificado (cf. Jo 12, 23). Acontece que a Sua glorificação está precisamente no que Ele dá, no que Ele deixa. A Sua vida é como o «grão de trigo», lançado à terra para morrer (cf. Jo 12, 24).

Por muito desconcertante que pareça a linguagem, é mesmo como diz Jesus: «Se o grão de trigo não morrer, fica só; mas se morrer, dá muito fruto» (Jo 12, 24). Se não morrer (se não for pisado), o grão de trigo não dá fruto. Jesus sujeita-Se a perder tudo para não perder ninguém.

 

  1. E nós, discípulos de Jesus, que estamos dispostos a perder? Para ficar com Jesus ressuscitado, é indispensável estar com Jesus crucificado. Para acompanhar Jesus no Seu regresso da terra, é indispensável acompanhar Jesus na Sua descida à terra. Afinal, quem quiser seguir Jesus, tem de aprender a pegar na Cruz (cf. Mt 16, 24). Um cristão sabe que, como notou Karl Rahner, «quem escolhe, escolhe a Cruz». Nada há de deprimente nisto; é aqui que encontramos a chave da verdade sobre Cristo: porque não há Ressurreição sem Cruz, também não há Cruz sem Ressurreição.

É por isso que o importante não é o que esperamos conquistar, mas o que estamos dispostos a deixar. A Quaresma, antes de valer pelo imenso que recebemos, vale igualmente pelo muito que deixamos. Tanto mais que, quando deixamos, apercebemo-nos de que, afinal, já estamos a receber.


 

C. Cuidado com a obesidade espiritual

 

  1. Precisamos, então, de fazer dieta, deixando de lado o peso do egoísmo e da superficialidade. A penitência torna-nos mais leves, mais habilitados a sair de nós e a caminhar com Cristo. Cuidado com a nossa obesidade espiritual. O que acumulamos nem sempre nos alimenta. Muitas vezes, o que se acumula cá dentro só dificulta o nosso caminho lá fora.

A Quaresma pode ser vista, portanto, como uma dieta que nos liberta de tanta adiposidade prejudicial, levando-nos a centrar o nosso apetite somente no essencial. E o essencial é Deus, é o amor de Deus, é o amor que vem de Deus para contagiar a humanidade.

 

  1. Ao chegar à Casa de Deus, não comecemos logo a pedir. Comecemos, antes de mais, por deixar. Deixemos a nossa vida velha, a nossa vida envelhecida. Revistamo-nos de uma vida nova, de uma vida renovada. Essa vida nova — e continuamente renovada — tem o nome de Jesus.

Tal como Abraão deixou a sua terra (cf. Gén 12, 1), deixemos nós também a nossa vida acomodada. Não é possível aderir a Jesus e, ao mesmo tempo, manter uma vida à margem de Jesus.


 

D. É preciso aterrar em Jesus

 

  1. Há tanta coisa para deixar! É essa (tanta) coisa que ergue muros à nossa adesão ao Evangelho de Jesus e ao Jesus do Evangelho. É preciso aterrar em Jesus e no Seu Evangelho. Em Jesus — e no Seu Evangelho —, Deus aterra na nossa história e enterra-Se completamente na nossa vida.

Como estes gregos, procuremos nós também ver Jesus (cf. Jo, 12, 21). E, como Filipe e André, procuremos também nós deixar ver Jesus (cf. Jo 12, 22). Procuremos ver Jesus no nosso mundo e procuremos rever o mundo em Jesus. Como Jesus foi a transparência do Pai — «quem Me vê, vê o Pai» (Jo 14, 6) —, que cada um de nós procure ser a transparência de Jesus. Que, pelo menos, nenhum de nós impeça alguém de se aproximar de Jesus.

 

  1. Como há dois mil anos, também hoje é preciso estar atento à «hora» de Jesus. É urgente acertar as nossas horas pela «hora» de Jesus. Jesus diz que «chegou a hora» (Jo 12, 23) e afirma que foi para «esta hora» que veio ao mundo (cf. Jo 12, 27). Viver com Jesus implica conviver longamente com a Cruz. A «hora» de que fala Jesus é a «hora» da Cruz. Tal como Jesus Se preparou para a Sua «hora», também nos prepara para que não desfaleçamos na nossa «hora», na «hora» de dar testemunho de Jesus.

O tema da «hora» foi uma espécie de guião para Jesus. Logo nas bodas de Caná, Ele diz que ainda não tinha chegado a Sua «hora» (cf. Jo 2,4). E, em Jerusalém, na Festa das Tendas, o evangelista regista, por duas vezes, que os judeus queriam prendê-Lo, mas não o fizeram «porque ainda não tinha chegado a Sua hora» (Jo 7,30; 8,20).

 

E. Escutemos o grito que vem da Cruz

 

  1. Nós já estamos na «hora» de Jesus, que é a hora nova do tempo novo. A «hora» de Jesus é a hora do testemunho, a hora da missão, a hora da evangelização. O Pai também está presente nesta «hora», como se nota pela voz que se ouve do Céu: «Glorifiquei-O e tornarei a glorificá-Lo» (Jo 12, 28). A glorificação de Jesus acontece no caminho da Cruz. A Cruz liga-nos a Deus e liga-nos uns aos outros em Deus.

É na Cruz que Jesus atrai e reúne (cf. Jo 12, 32). Uma nova humanidade desponta, uma nova aliança começa (cf. Jer 31,31-34. Esta nova aliança, anunciada por Jeremias, atinge o seu auge na Cruz. É nessa nova aliança que Deus perdoa todos os pecados, apagando completamente as nossas faltas (cf. Jer 31,33-34).

 

  1. É uma humanidade totalmente nova, aquela que se inaugura em Jesus. A Carta aos Hebreus assegura que a Sua entrega na Cruz oferece-nos a «salvação eterna» (Heb 5, 9). Jesus não Se poupa a nada para que nós possamos obter tudo. Não foi fácil, porém. Foi até tremendamente difícil. De facto, Jesus consumou a Sua entrega na Cruz no meio de «grandes clamores e lágrimas» (Heb 5, 7). Também para Jesus, o que vale custa e o que custa vale. Até Jesus treme — e estremece — diante da morte. Mesmo assim, não vacilou. Jesus deixa tudo para dar tudo. Esta é a vivência suprema da Lei do Amor, que Ele pregou a todos e testemunhou como ninguém.

Qual é a temperatura do nosso amor? Que estamos dispostos a deixar? Talvez ainda estejamos presos a muitas coisas. Escutemos, por isso, o interminável grito que vem da Cruz. Deixemos os ódios, as mentiras e as vaidades. E deixemos também as vinganças, os ressentimentos e as mágoas. Aquilo que nos é oferecido é infinitamente maior do que aquilo que possamos deixar!

publicado por Theosfera às 05:08

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