Espantam-se os estudiosos com o conformismo das pessoas diante da situação actual.
E, mais, há quem fique perplexo pelo facto de, para lá do conformismo, ainda haver quem alinhe pela euforia, pelo divertimento. Tratar-se-á de evasão? Já que não se pode transformar a realidade, tentamos esquecê-la por instantes?
É, realmente, muito estranho o clima que se vive em Portugal.
Não creio que se trate do talante pacífico da população. Creio estarmos perante um deslocamento da revolta. Em vez da denúncia cívica, estamos em vias de ter uma vaga de violência social. Os assaltos e outras formas de criminalidade traduzem um clima de guerra social. E isto é muito preocupante.
Entretanto, perguntar-se-á: porque é que não existe uma vaga de manifestações como outrora?
Penso que a explicação é simples. Outrora, por exemplo nos anos de 1960, havia um horizonte. Lá fora, a situação era alentadora. Lutava-se aqui para termos algo parecido com o que se tinha no estrangeiro.
Neste momento, as pessoas sentem não ter grande futuro à sua frente. Como refere Luís Cília, só «parece haver um grande futuro atrás de nós».
É bom lidar com a adversidade pela via do diálogo. Mas há situações em que é preciso, sem abandonar a paz, erguer a voz.
Confesso que até eu fiquei surpreendido, mas fez-me pensar uma passagem de um livro de Timothy Radcliffe, onde se defende...a cólera!
A cólera «dá-nos a força para confrontar o que está errado». Até o Doutor Angélico assumia ser próprio da cólera «precipitar-se sobre o mal e, assim, colaborar directamente com a coragem».
E Bede Jarret vai mais longe: «O mundo não corta com o mal, porque não é suficientemente colérico».
Santo Agostinho achava que a cólera era uma das «filhas mais belas da esperança».
Timothy Radcliffe entende que os líderes eclesiásticos deviam «encorajar os que estão zangados com eles a ousar exprimi-lo, certos de que isso fortalecerá a comunhão da Igreja».
A cólera não é uma quebra de solidariedade nem um sinal de deslealdade. Pode ser mesmo um sintoma de amizade.
D. Manuel Martins disse que, no final da Missa, se deveria dizer «ide em guerra pela justiça».
É preciso um pouco de arrojo para «denunciar sem medo as injustiças contra a dignidade das pessoas».
Este é o momento de, pacificamente, nos encolerizarmos!