1. O Concílio Vaticano II termina a Constituição Dogmática sobre a Igreja com um capítulo dedicado a Maria.
A mensagem que, no fundo, pretende veicular é:
1) aquilo que se diz sobre a Igreja já foi plenamente realizado por um membro da mesma Igreja; não se trata, portanto, de algo irrealizável até porque já foi integralmente concretizado na vida de Maria;
2) quem quiser encontrar um modelo para a sua vivência eclesial tem em Maria a referência maior e o auxílio supremo.
É que Maria faz parte da Igreja, verdade que nem sempre parece ter sido devidamente valorizada.
Com efeito, a relação da Igreja com Maria sofreu, ao longo dos tempos, de dois excessos: um alegadamente maximalista, outro sem dúvida minimalista.
Durante séculos, Maria parecia estar acima da Igreja. Nas últimas décadas, Maria pareceu estar ao lado da Igreja.
Percebe-se a primeira posição e entende-se a intenção que subjaz à segunda.
Maria tem um papel tão relevante na História da Salvação que nunca será demais exaltar o Seu lugar e relevar a Sua missão.
Isso levou, porém, a que, em não poucos sectores se outorgasse a Maria um estatuto quase divino.
Apesar de, oficialmente, a doutrina falar de uma veneração especial (hiperdulia), que a singulariza dos santos (dulia), a devoção popular propendia a votar-lhe um culto praticamente igual ao reservado a Deus: adoração (latria).
E o certo é que, ainda hoje, não falta quem, entrando num santuário, se dirija mais depressa à imagem de Nossa Senhora do que ao sacrário. Quanto ao gesto, há quem não hesite em fazer exactamente o mesmo nas duas situações. A tendência é para ajoelhar tão rapidamente perante a referida imagem como ante o Santíssimo Sacramento.
Formalmente, nunca houve uma Mariolatria, mas os nossos irmãos protestantes, que amam Maria como Mãe de Jesus, sempre mostraram alguma incomodidade frente ao que vêem entre nós.
As procissões marianas são as que maiores multidões arrastam. E não há dúvida de que Maria transporta-nos a Jesus. Como poderia, aliás, afastar-nos de Jesus quem nos oferece Jesus?
O problema não está, obviamente, em Maria. Pode estar em muitos de nós, indevidamente esclarecidos e pouco motivados para um correcto esclarecimento.
2. É por isso que, a partir de certa altura do século passado, houve a pretensão de corrigir esta situação, à custa, porém, de cair numa situação oposta.
Maria era vista não acima, mas porventura ao lado. Mais que uma menorização do Seu papel, houve um quase esbatimento da Sua presença.
A devoção mariana, em alguns círculos, foi decrescendo. Em muitas casas formativas, a recitação do Terço do Rosário praticamente desapareceu.
Em algumas escolas de Teologia, a Mariologia passou a ser uma disciplina meramente opcional. Como nota Charlene Spretnak, mariano foi aparecendo como sinónimo de «demasiado regressivo, demasiado reaccionário»!
Para muitos católicos, Maria é «um actuante secundário». Mais do que uma contestação, assistiu-se a uma ocultação.
Esta atitude era vista como profiláctica, visando supostamente regenerar a fé e reconduzi-la ao essencial.
Pretendendo-se devolver à fé a sua indiscutível índole teo-cristocêntrica, achava-se que a invocação reiterada de Maria poderia ser um obstáculo.
Presumia-se, portanto, uma evolução e arrogava-se inclusive um estatuto de superioridade.
Em nome da verdade, é preciso ressalvar que, nestas alturas, foi o povo simples (sem uma formação aprofundada, mas dotado de uma intuição assombrosa) que assegurou a continuidade da devoção mariana.
Em muitos lares e ao longo de não poucos caminhos, o Terço alavancou o encontro com Jesus Cristo e como que alcatifou o desabrochamento da fé.
3. Foi neste quadro que o Concílio Vaticano II, decalcando textos da antiguidade, teve uma opção de rara pertinência e enorme felicidade.
Com sobriedade, mas também com a devida ênfase, a assembleia conciliar ressituou Maria: não acima nem ao lado, mas dentro da Igreja.
Não foi fácil, no entanto, chegar a esta opção. Houve uma divisão quase simétrica na votação acerca do caminho a seguir.
Havia quem, como o Cardeal Rufino Santos (Arcebispo de Manila), entendesse que a doutrina sobre Maria justificava um documento próprio. E foi elaborado até um projecto, intitulado «De Mysterio Mariae in Ecclesia» (Acerca do Mistério de Maria na Igreja).
A posição contrária, liderada sobretudo pelo Cardeal Franz Koenig (Arcebispo de Viena), entendia que o contexto mais adequado para falar de Maria era o texto sobre a Igreja.
A votação, ocorrida a 29 de Outubro de 1963, patenteou uma fractura inusual. É que, habitualmente, as decisões eram tomadas por percentagens superiores a 90%.
Desta vez, entretanto, a diferença foi por uma margem inferior a 2%: apenas 40 votos num universo de 2193!
E é assim que Maria aparece no último capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja. No fundo, o que se visa é apontar Maria como modelo de realização do ser Igreja.
Tudo o que é dito anteriormente, nos sete capítulos e no proémio, está prolepticamente antecipado na figura de Maria.
Isto significa que, apesar da parcimónia aparente nas palavras, Maria recebe o enquadramento perfeito. Ela pertence à Igreja, faz parte do mesmo povo que nós.
Trata-se, é claro, de um membro especial, mas, ainda assim, membro.
Diz o Concílio que Maria é um «membro eminente e inteiramente singular da Igreja, o seu tipo e exemplar perfeitíssimo».
4. Raniero Cantalamessa prefere o termo «espelho». Desde logo porque «mais compreensível para todos, menos ligado a uma certa linguagem técnica da exegese bíblica e também porque é mais rico de sugestão e próprio para exprimir, quase plasticamente, a ideia que se quer transmitir».
Para lá das palavras, importante é realçar o mesmo significado. Maria é, de facto, o espelho da Igreja num duplo sentido: «primeiro, porque reflecte a luz que Ela mesma recebe, como faz um espelho com a luz do sol; e, em segundo lugar, porque n'Ela a Igreja pode e deve "espelhar-se", isto é, olhar-se e confrontar-se para se tornar bela aos olhos do Seu celeste Esposo».
De resto, o que se faz é aplicar a Maria o que, mais vastamente, se diz da Palavra de Deus, também qualificada como «espelho» (cf. Tgo 1, 23).
Dizer, por conseguinte, que Maria é um espelho da Igreja implica perguntar. Que significa uma palavra, uma atitude ou um acontecimento da vida de Nossa Senhora para a Igreja e para cada um de nós? Que havemos de fazer para pôr em prática o que o Espírito Santo quis dizer-nos através de Maria?
A resposta mais consistente passará não apenas pela devoção, mas acima de tudo pela imitação de Maria.
Aliás e como afirmava Charles de Foucald, «amar é imitar». Quem ama propende a imitar aquele (neste caso, aquela) que ama.
O Concílio assume ter sido sua intenção não propor uma doutrina sistemática sobre Maria nem dirimir questões pendentes da Mariologia, mas acentuar a relação dos membros da Igreja para com a Mãe de Deus. Para eles, ela desponta como um modelo.
Apesar de, antecipadamente, se saber que ninguém atingirá o mesmo patamar de fidelidade, é importante ter uma referência desta grandeza. Trata-se de um estímulo poderoso para o crescimento.
5. Maria é um modelo na humildade, na simplicidade, no despojamento, na transparência. Ela não precisa de falar muito sobre Deus. Ela é soberanamente eloquente ao fazer transparecer Deus até à mais íntima medula do Seu ser.
Ela é o arquétipo, aquela em quem a Igreja obteve a sua concretização mais sublime. Enquanto speculum (espelho), Maria é spes (esperança). Como espelho, é esperança para todos quantos querem seguir Jesus, no Seu novo corpo que é a Igreja.
Numa altura em que tanto escasseiam as referências, é reconfortante sentir que uma mulher é referência maior para a vivência do Evangelho.
E não há dúvida de que, na Sua humildade e quase sempre no Seu silêncio, Maria é um compêndio vivo de Eclesiologia.
A Igreja tem de conjugar, cada vez mais, a dimensão paulina e a dimensão mariana. Ela precisa do arrojo da palavra de S. Paulo e carece, ao mesmo tempo, da acolhedora discrição de Maria.
Ela corporiza, supremamente, uma Igreja confidente (que escuta), suporte imprescritível de uma Igreja conferente (que anuncia).
Na hora que passa, o silêncio é a alavanca que fermenta e credibiliza a palavra. Daí que o perfil mariano da Igreja surja como tão necessário, prioritário e decisivo.
Maria trouxe o Fundamento da Igreja no Seu seio. Hans Urs von Balthasar chamava-Lhe o «cálice do Verbo».
Maria continua a oferecer-nos um espelho da Igreja na Sua conduta. Por isso, Ela é Mãe da Igreja e figura do que há-de ser a Igreja Mãe.
Olhar para Maria é contemplar a Igreja a partir das suas raízes mais fundas. E à luz do seu horizonte mais vasto.